FILOSOFIA E PSICOLOGIA

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ERROS CRASSOS NA LECIONAÇÃO DE FILOSOFIA

Posted by * em 22/09/2019

Eis alguns erros crassos (e, infelizmente, frequentes) na lecionação da filosofia:

  • Acerca das áreas (subdivisões, disciplinas) da filosofia: há já muito tempo que o estudo do real (do Ser) como um todo (e da realidade, da efetividade, etc) é levado a cabo no âmbito da Ontologia, não da “Metafísica”, “Cosmologia Racional”, etc. Ao remeter as questões ontológicas para o âmbito de uma “metafísica”, que hoje só existe (enquanto distorção mística da Ontologia) em cursos teológicos, alguns autores de manuais demonstram desconhecimento e simpatias místicas pouco racionais e pouco atualizadas.

  • Há uma grande confusão em relação ao que se entende por “termo”, “proposição” e “argumento”. Esta confusão é mais patente no que diz respeito ao significado de “proposição”. Alguns autores consideram que a proposição é a “expressão verbal” do juízo. Outros, que apenas repetem, como papagaios, a última moda de livros de popularização escritos em inglês (e, ao dizermos isto, não negamos a boa qualidade e utilidade de muitos desses livros), identificam a proposição com o juízo (amalgamando e indiferenciando coisas distintas). Ora, os termos, proposições e argumentos são, obviamente, as expressões lógicas de Conceitos, juízos e raciocínios. A proposição não é o juízo em si, é a sua expressão lógica. Tomemos dois juízos diferentes, um juízo “de facto” e um juízo “de valor”, expressos verbalmente pelas frases “Lisboa é capital de Portugal” e “Lisboa é uma cidade linda”. Podemos dizer que, tanto num caso como no outro, estamos a falar de uma proposição de tipo A (S é P). As proposições são importantes para a aferição lógica dos argumentos. Repetindo, as proposições são a expressão lógica dos juízos e as frases declarativas são a sua expressão verbal.

  • Praticamente nenhum dos autores de manuais de filosofia percebe a relação entre as ideias políticas de John Rawls e a socialdemocracia (relação claríssima, pese a fundamentação Rawlsiana baseada no individualismo e numa variante do “egoísmo racional”, que refletem o modo característico de, nos EUA, entender e aceitar a ideia de solidariedade social). Do mesmo modo, quase ninguém refere ou sequer percebe a relação, mais do que óbvia, entre as ideias políticas de Robert Nozick e o neoliberalismo. Um dos maiores confrontos ideológicos da nossa época é ignorado, mesmo quando são estudados, pormenorizadamente, representantes dessas posições em confronto.
  • A Gnosiologia é frequentemente confundida com a Epistemologia. Mas, apesar de uma certas correntes anglo-saxónicas e francesas promoverem essa confusão (denominando “Epistemologia” tanto a Gnosiologia como a Epistemologia), se formos minimamente rigorosos veremos que Gnosiologia refere-se ao estudo do conhecimento em geral e Epistemologia refere-se ao estudo do conhecimento científico, ao estudo da ciência, ao estudo de um tipo especícico de conhecimento. A Epistemologia faz parte da Gnosiologia, mas a parte não se pode confundir com o todo. O estudo do conhecimento em geral ou de modos não científicos de conhecimento (por exemplo, o conhecimento em geral ou o conhecimento sensorial) inserem-se no âmbito da gnosiologia, mas não se referem a fenómenos diretamente epistémicos. No programa de filosofia no secundário, o estudo do racionalismo e empirismo diz respeito à gnosiologia e o estudo das conceções de Karl Popper e Thomas Kuhn acerca da ciência diz respeito à Epistemologia.

  • Seguindo uma certa interpretação redutora da filosofia kantiana, todas as conceções que afirmam a possibilidade de conhecer a realidade são chamadas, com leveza e alguma leviandade, de “dogmáticas”. Mas há uma diferença óbvia entre afirmar que o conhecimento da realidade é possível (embora como um processo de aproximação, com aspetos absolutos mas também relativos) e afirmar que conhecemos toda a realidade de modo puramente absoluto. Ao chamar todas as concepções que afirmam a possibilidade de conhecimento de “dogmáticas”, a filosofia faz um frete ao ceticismo mais extremo e emerge como inimiga da ciência. Um absurdo inenarrável.

Por exemplo, no manual “Ser no Mundo 11”, afirmam os autores: “a ilusão de que apreendemos a realidade é um engano da maioria dos seres humanos”. Esta é, segundo eles, uma verdade “a reter” (Ser no Mundo, Areal Editores, 1.ª ed, 2014, página140). Os autores nem repararam na inadequada natureza tautológica da afirmação de que uma “ilusão” é um “engano”. Na página 154, os autores voltam ao ataque, cheios de soberba, sectarismo e pretensa autoridade: “entende-se por dogmatismo a posição que defende que o conhecimento é possível”. Ou seja, qualquer pessoa que afirme que é possível conhecer seja o que for, é marcada para todo o sempre, a ferro e fogo, com o epíteto de “dogmático”. Afirmações como estas, apresentadas deste modo taxativo a alunos que nunca leram Kant e dificilmente compreenderiam a distorção que a influência kantiana sofreu na mente de certos autores de manuais, aparece como um ataque direto, e até reacionário, à ideia da possibilidade de conhecimento em geral. O exemplo apresentado não é caso isolado, antes reflete um paradigma retrógrado com ampla aceitação no que concerne ao entendimento da questão da possibilidade do conhecimento. Este reacionarismo gnosiológico vai contaminando a sociedade a conta-gotas e contribuindo, paulatinamente, para o surgimento de tendências irracionalistas e populistas que apenas “surpreendem” os menos perspicazes.

  • Praticamente nenhum dos autores de manuais de filosofia percebe uma peculariedade, também bastante óbvia, da definição platónica de conhecimento (chamada de “definição tradicional de conhecimento”): esta é a definição de conhecimento no sentido de Episteme, de conhecimento rigoroso, sistemático, teórico, fundamentado, “protocientífico”, não de conhecimento em geral. Podemos entender as razões que levaram Platão, que desprezava o conhecimento sensorial, a entender esta caracterização de um tipo específico de conhecimento (do que mais tarde seria o conhecimento caraterístico das ciências particulares e da filosofia) como sendo a de conhecimento em geral. Mas é inaceitável que professores de filosofia não percebam isso e apresentem isto como uma definição ou caraterização do conhecimento em geral. Por esta lógica, as crianças e os animais não seriam capazes de conhecer minimamente a realidade circundante. Um autêntico disparate!
  • Em inglês, é, frequentemente, usada a palavra science para designar as ciências da natureza. Por exemplo, no famoso excerto de What Does It All Mean? de Thomas Nagel “Philosophy is different from science and from mathematics. Unlike science it doesn’t rely on experiments or observation, but only on thought. And unlike mathematics it has no formal methods of proof. It is done just by asking questions, arguing, trying out ideas and thinking of possible arguments against them, and wondering how our concepts really work.”, a palavra science refere-se às ciências da natureza, ciências empíricas, não à ciência em geral. Se isto for traduzido literalmente como “ciência” e não como “ciências da natureza” poderíamos chegar à conclusão absurda de que a matemática não seria uma ciência. Não se pode traduzir as palavras simplesmente como o Google Tradutor as traduziria.

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